Feitos à imagem do Criador: liberdade, trabalho e a dignidade de criar

Os seres humanos são feitos à imagem de Deus e, no entanto, somos profundamente corrompidos e caídos. Esses aspectos da natureza humana têm implicações que vão além do que normalmente se reconhece em círculos cristãos. Entre outras coisas, somos subcriadores, fazedores e trabalhadores em missão. Todos nós devemos, conforme declarou Josué sobre sua casa, “servir ao Senhor” (Josué 24:15). Como Jesus, devemos “tratar dos negócios de meu Pai” (Lucas 2:49), e, como exorta Paulo, trabalhar sempre “como para o Senhor” (Colossenses 3:23). Todo o nosso trabalho - mesmo o que não é explicitamente religioso - deve ser o trabalho que o Senhor tem para nós, e deve ser feito como se fosse para Ele.

Imagine alguém que se coloca no caminho de um trabalhador, interrompe-o, toma-lhe as ferramentas, talvez até amarre-lhe as mãos, e diz: “Não, você está fazendo errado. Deixe-me mostrar como realmente se faz.”... “Ah, e até que concorde em fazer do meu jeito, suas mãos continuam atadas.” Se isso lhe soa presunçoso e ímpio, então você é um defensor da liberdade.

Li Flawed Perfection: What It Means To Be Human & Why It Matters For Culture, Politics, and Law (“Perfeição Falha: O Que Significa Ser Humano e Por Que Isso Importa Para a Cultura, a Política e o Direito”), de Jeffrey A. Brauch, o livro combina teologia (quem somos diante de Deus), direito (como resolvemos casos reais, como responsabilidade, culpa, liberdade), política/cultura. Ele usa casos jurídicos concretos para mostrar como visões antropológicas influenciam leis e políticas.

Um dos alertas centrais: o movimento de direitos humanos e de políticas públicas pode falhar se ignorar a dimensão da “queda” humana - ou seja, se assumir que o humano é apenas bom, sem considerar maldade, desejo de poder, corrupção. Brauch é professor de direito e sua obra explica crenças cristãs conservadoras bastante tradicionais, e, ainda assim, a visão expressa no seu livro é tristemente desconhecida entre cristãos.

Essencialmente, a natureza humana inclui o fato de que fomos criados à imagem de Deus e, portanto, possuímos valor e dignidade inerentes - mas também somos caídos, corruptos e corruptíveis, inclinados a desumanizar aqueles que julgamos nos ferir. Independentemente de raça, nacionalidade, idade ou capacidade cognitiva, todos os humanos têm direitos como o direito à vida, ao tratamento humano e à autodefesa. As ideias expressas hoje são por vezes antitéticas à cosmovisão cristã sobre quem somos.

Em Flawed Perfection, Brauch explica em detalhes como seres humanos caídos cometem abusos de poder governamental ao tentar criar uma utopia na terra e proibir ou regular todo pecado. Parece libertário? Talvez por implicação lógica, mas, ao ler, você não terá essa impressão. A obra se encaixa firmemente na tradição cristã conservadora: os humanos têm dignidade e valor intrínsecos, devem ser tratados humanamente, e não se pode proibir todo vício. As restrições à imoralidade devem ser limitadas, na tradição de Tomás de Aquino, àquilo que “é possível para a maioria abster-se”.

Mas devemos ir além. As implicações da natureza humana - especialmente o fato de sermos criados à imagem de Deus - constituem uma poderosa defesa do libertarianismo cristão. Aspectos frequentemente ignorados do ser “criado à imagem de Deus” ajudam a esclarecer o propósito da liberdade. 1) Deus é o Criador (Gênesis 1:1). 2) Deus é um Trabalhador (Gênesis 2:2). Os humanos são subcriadores, fazedores, trabalhadores.

J.R.R. Tolkien, mais famoso por O Senhor dos Anéis, fala disso em seu ensaio On Fairy-Stories (“Sobre Contos de Fadas”), em relação à escrita de fantasia. Ele descreve os humanos num pequeno poema:

“Homem, Subcriador, a Luz refratada,
que, de um único Branco, se espalha em mil cores,
combinadas sem fim, em formas vivas
que de mente em mente se movem.”

Deus - em Sua plenitude de verdade, vida e luz - é o “Branco único”; os humanos usam essa luz em combinações infinitas para realizar a obra multifacetada de Deus na terra. “O cristão ainda precisa trabalhar, com mente e corpo, sofrer, esperar e morrer; mas agora pode perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito - um propósito que pode ser redimido.”

Josué diz: “Serviremos ao Senhor.” Tolkien nos descreve como “Luz refratada.” Os governantes e legisladores respondem: “Façam seu serviço. Refratem sua luz. Tudo bem. Mas façam-no dentro dos limites das regras e regulamentos que impomos a vocês.”

As pessoas foram feitas para trabalhar e criar, numa missão de exercer domínio sobre a terra. Mas onde, no Mandato do Domínio, está escrito que o homem deve dominar o homem?

Reconheço que a Bíblia se preocupa muito mais com o pecado e a justiça, a necessidade de salvação, a graça, a e o amor - temas abertamente religiosos. Ela não se ocupa tanto em assegurar às pessoas que possam seguir certas vocações sem os obstáculos que o Estado coloca em seu caminho. A política é secundária em relação ao propósito central das Escrituras. Mas não é preciso ser doutor em ética para perceber que desviar o povo de Deus de seu chamado vocacional não é algo bom.

Deus tem trabalho de sobra para todos - produtivo, criativo, mental, físico, de todo tipo:

“Ousamos construir
deuses e seus templos de sombra e luz,
e semeamos a semente dos dragões 
com ou sem abuso.”

Sim, somos caídos. O que fazemos “pode ser mal feito.” Nossos esforços, nossa produção, nossa economia - tudo pode se desviar. Ainda assim, devemos ter liberdade para cumprir nossos chamados.

Tolkien novamente:

“Os homens conceberam não apenas elfos, mas imaginaram deuses, e os adoraram — até mesmo aqueles mais deformados pela própria maldade de seus autores. Fizeram deuses falsos de outros materiais: suas ideias, suas bandeiras, seu dinheiro - até mesmo suas ciências e teorias sociais e econômicas exigiram sacrifícios humanos. Abusus non tollit usum. A fantasia permanece um direito humano: criamos à nossa medida e em nosso modo derivativo, porque somos feitos - e não apenas feitos, mas feitos à imagem e semelhança de um Criador.”

Curiosamente, Tolkien aqui menciona diretamente as “teorias econômicas” como campo de idolatria. E Deus sabe o quanto nós, libertários, amamos nossas teorias econômicas bem estruturadas. A advertência do Monte Sinai - “não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20:3) - continua vital e obrigatória. E muito já se escreveu sobre idolatria, ampliando seu sentido para além de simplesmente esculpir uma imagem e adorá-la. J.I. Packer escreveu:

“Como criatura, o homem anseia por um deus a quem servir; como pecador, ele se resolve a ser o próprio deus e exige que tudo o mais o sirva.”

Assumir senhoria sobre outros seres humanos é uma presunção suprema - é dizer: “Para servir melhor a Deus, você deve servi-lo dentro dos limites que eu (governante, rei, legislador) estabeleço para você.” Não é isso, por si só, idolatria?

Vemos isso com mais clareza em assuntos de prática religiosa. Nenhum cristão toleraria uma ordem estatal obrigando-o a orar de certa forma - e temos o heróico exemplo de Daniel (Daniel 6:10) sobre como reagir a esse tipo de abuso. Mas esse princípio também se aplica a áreas mais mundanas, menos “religiosas”.

A Bíblia não se preocupa tanto com um governante dizendo a alguém se deve pasteurizar o leite antes de vendê-lo, e por quê? Talvez porque ela foca no sujeito, não no governante. Viva de modo piedoso, apesar dos obstáculos colocados diante de você. Mas não seja você quem coloca esses obstáculos.

Jesus criticou explicitamente os governantes gentios:

“Os reis dos gentios exercem domínio sobre eles, e os que exercem autoridade são chamados de benfeitores. Mas entre vós não será assim; o maior entre vós seja como o menor, e quem governa como quem serve. Pois quem é maior: o que está à mesa, ou o que serve? Não é o que está à mesa? Eu, porém, estou entre vós como aquele que serve.” (Lucas 22:25–27)

Reflita corretamente sobre si mesmo e sobre os outros, sobre sua natureza humana e a deles: você e eles são seres humanos feitos à imagem de Deus, cheios de valor e dignidade intrínsecos, caídos e corruptos, mas também subcriadores, fazedores, trabalhadores e companheiros de labuta.

Nem todos são cristãos, e toda essa conversa sobre “servir ao Senhor” não se dirige apenas aos cristãos? Mais diretamente, sim, mas não exclusivamente. Nenhum cristão afirmaria que o não cristão perde sua dignidade inerente por não ser salvo. Quem, senão um bárbaro, trataria os cristãos como humanos e olharia para os não cristãos como sub-humanos? E não foram todos os crentes, um dia, incrédulos? Como, senão pela liberdade, se caminha dessa condição de pecador à de santo? Qualquer incrédulo pode se juntar à família de fiéis a qualquer momento e a liberdade é a condição necessária e justa para que o ser humano possa se relacionar direta e corretamente com Deus.

Devemos “desenvolver a nossa salvação com temor e tremor” (Filipenses 2:12). Devemos também, com o mesmo temor e tremor, desenvolver o nosso trabalho diário, o nosso criar, fabricar, pensar e agir - entre nós e Deus - sem sermos cerceados, restringidos, amarrados, manipulados ou tributados por outros homens.

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